O processamento seguro de leite humano
Por ser destinado a um público-alvo dos mais vulneráveis – bebês prematuros hospitalizados – as medidas de controle e de gestão necessárias são rigorosas. Protocolos integram práticas da área de saúde (como a destinada a pacientes hospitalares) com farmacêuticas, além dos processos tradicionais de tecnologia de alimentos.
O tamanho do “mercado” pode surpreender. Em 2018, foram coletados 213.233,9 litros de leite, vindos de 181.407 doadoras, que foram destinados a 184.207 receptores. Como em todo processo, há perdas e descartes por falhas na qualidade e 159.681 litros foram distribuídos para consumo efetivamente. Quem faz a gestão destes dados e normatização desta cadeia no Brazil é a Fiocruz, dentro da Rede Global de Bancos de Leite Humano. Para obter mais estatísticas sobre os dados de coleta e distribuição veja o relatório da RBBLH.
É importante lembrar que um litro de leite materno doado pode alimentar até 10 recém-nascidos por dia. A depender do peso do prematuro, um (1) mL já é o suficiente para nutri-lo cada vez que for alimentado.
Organizei o raciocínio da gestão desta cadeia com base nas cartilhas e materiais da Fiocruz, para que fique alinhada com a linguagem da indústria:
1. A cadeia de fornecimento de leite humano
O fornecimento de leite materno é necessariamente por doação, já que é vedada a comercialização de leite humano. São lactantes, normalmente de parto recente, com produção excedente, que além de nutrir os próprios bebês, suprem os prematuros hospitalizados. Para se tornar uma doadora de leite materno é preciso realizar um cadastro no banco de leite em uma espécie de homologação, seguida de treinamento.
1.1 Pré-requisitos para as fornecedoras e avaliação continuada
Em analogia aos controles que estabelecemos para a cadeia de leite bovino/bubalino/caprino, são estabelecidos requisitos. No caso, temos a RDC 171/2016 da Anvisa estabelecendo que devem ser consideradas aptas para doação as nutrizes que atendem aos seguintes requisitos:
Estar amamentando ou ordenhando leite para o próprio filho.
• Ser saudável.
• Apresentar exames pré ou pós-natal compatíveis com a doação de leite ordenhado.
• Não fumar mais que 10 cigarros por dia.
• Não usar medicamentos incompatíveis com a amamentação.
• Não usar álcool ou drogas ilícitas.
• Realizar exames (hemograma completo, VDRL, anti-HIV e demais sorologias usualmente realizadas durante o pré-natal) quando o cartão de pré-natal não estiver disponível ou quando a nutriz não tiver feito o pré-natal.
• Outros exames podem ser realizados conforme perfil epidemiológico local ou necessidade individual da doadora, como como HTLV 1 e 2.
Uma vez homologadas, pode haver um descredenciamento, que é resultado dos seguintes requisitos:
Condição de saúde a cada doação.
• Condição do ambiente de coleta do leite.
• Surgimento de patologias ou da utilização de medicamentos incompatíveis com a amamentação.
Ou seja, além da homologação há um “acompanhamento de performance” das doadoras.
1.2 Treinamento das fornecedoras de leite humano
As doadoras passam por um treinamento de boas práticas, que inclui higiene das mãos e mamas, manipulação e esterilização dos frascos e utensílios, bom como identificação. Eu passei por ele e recebi um folheto impresso, juntamente com um “Kit de EPI”, constituído de máscara e touca descartável, além dos frascos esterilizados com etiquetas que irão conter a matéria-prima.
Conforme o caso, principalmente para as nutrizes de primeira viagem, é realizado treinamento sobre técnica de ordenha manual e higiene das bombas extratoras, conforme o caso.
A orientação é que se proceda ao congelamento do leite no freezer doméstico e entre em contato com o banco de leite para que em menos de 15 dias seja coletado. Como o lote mínimo é da ordem de 200 ml e nem sempre é possível fazer todo este volume de extração, as doadoras podem ir “sobrepondo” as camadas no freezer.
Atualmente, 30% do leite humano são perdidos no processo de doação, entre a coleta e o recebimento pelo recém-nascido.
2. Captação e transporte do leite humano
Como é difícil conseguir fornecedores em número que supra a demanda, é preciso facilitar e ir até elas. A maioria dos bancos de leite faz coleta domiciliar onde aproveita-se, para, informalmente, fazer uma “auditoria às instalações” da doadora.
Os rótulos das embalagens destinadas à coleta domiciliar devem conter no mínimo as seguintes informações: identificação da doadora, data e hora da primeira coleta.
Os frascos com leite cru que foram congelados no freezer doméstico devem ser transportados de forma que a temperatura máxima não ultrapasse 5ºC (cinco graus Celsius) para os produtos refrigerados e -1ºC (um grau Celsius negativo) para os produtos congelados. O tempo de transporte não deve ultrapassar 6 horas.
Todo transporte é realizado em caixas isotérmicas e com gelo reciclável e controle de temperatura, mantendo assim a qualidade do seu leite. Aliás, uma curiosidade sobre os frascos: por uma questão de custos, usam-se frascos de alimentos de mercado como maionese e café solúvel, que sejam de vidro com tampa rosqueada, pois os frascos hospitalares são muito caros. Essa demanda mobiliza algumas campanhas de mídia, como pode ser visto aqui e aqui. O vidro é um material bastante inerte e esterilizável. As tampas de plástico são preferíveis às de metal, que podem proporcionar migração de metais e vernizes.
3. Seleção e classificação no recebimento
O leite doado passará por um processo de seleção e classificação, sendo pasteurizado e, por fim, liberado se atender a todos os requisitos.
3.1 Degelo Para que possa ser amostrado e processado, o produto é descongelado em banho-maria, ou eventualmente, em micro-ondas. A temperatura final do produto submetido a degelo não deve exceder 5°C (cinco graus Celsius).
3.2 Testes no recebimento
A seleção compreende a verificação de:
a) condições da embalagem;
b) presença de sujidades;
c) cor;
d) off-flavor
e) acidez Dornic.
A classificação compreende a verificação de:
a)período de lactação;
b)acidez Dornic;
c) conteúdo energético (crematócrito).
Os rótulos das embalagens de leite humano ordenhado cru (LHOC) e do leite humano ordenhado pasteurizado (LHOP) estocado devem conter no mínimo as seguintes informações: identificação da doadora, conteúdo energético e validade.
4. Processamento e Pontos Críticos de Controle
A amamentação de um bebê por outra mãe foi uma prática bastante disseminada pelas amas-de-leite no passado, mas não é recomendada pelas mesmas razões que não é indicado o consumo de leite cru. Contraindicada formalmente pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a amamentação cruzada, como é conhecida a prática, traz diversos riscos ao bebê, podendo transmitir doenças infectocontagiosas, sendo a mais grave o HIV/Aids.
A única situação onde está previsto o o uso de leite cru, é no caso de mãe para o próprio filho, se feito em condições controladas conforme a Norma Técnica NT 47-18.
É requisito legal que o LHOC coletado e aprovado pelo BLH deve ser pasteurizado a 62,5ºC (sessenta e dois e meio graus Celsius) por 30 (trinta) minutos após o tempo de pré-aquecimento.
Caso o banho-maria não disponha de agitador automático, o funcionário responsável pela pasteurização deverá agitar manualmente cada frasco, sem retirá-lo do banho-maria, de 5 em 5 minutos.
Transcorridos os 30 minutos relativos à letalidade térmica, promover o resfriamento dos frascos até que o leite humano atinja uma temperatura igual ou inferior a 5ºC. O resfriamento dos frascos pode ser obtido através de banho de gelo.
A pasteurização do leite humano deverá ser monitorizada a cada 5 minutos, com registro da temperatura no momento da averiguação. Não se permite oscilação da temperatura superior a 0,5ºC.
A temperatura de pasteurização do leite humano deve ser registrada em planilha específica.
Como os volumes são pequenos, o processo tem características manuais. Não se misturam leites de diferentes nutrizes. Cada frasco tem origem única. O aquecimento é feito em banho-maria e após atingido o binônimo tempo-temperatura, o leite é colocado em banho de gelo. Menos comum são os banhos automáticos com resfriamento com água gelada, sendo de custo muito elevado.
5. Testes de liberação e estocagem
Basicamente é realizada análise microbiológica de coliformes totais no produto já pasteurizado.
O LHOP deve ser estocado sob congelamento a uma temperatura máxima de – 3ºC (três grau Celsius negativo), por até 06 (seis) meses.
O LHOP liofilizado e embalado a vácuo pode ser estocado em temperatura ambiente pelo período de 1 (um) ano.
6. Distribuição e público consumidor
A cadeia de distribuição pode ser bastante curta (bancos de leite geralmente são localizados em maternidades, próximas das unidades neonatais) ou o transporte isotérmico acontecer entre o banco e outro hospital, ou eventualmente, residência.
Há critérios para priorização dos consumidores deste produto tão caro e escasso como por exemplo:
Recém-nato prematuro e/ ou de baixo peso que não estão com reflexo de sucção satisfatório;
Recém-nato com algum tipo de doença infecciosa, preferencialmente êntero-infecções;
Lactentes portadoras de deficiências imunológicas;
Lactentes portadoras de patologias do trato gastrintestinal;
Recém-nascido portador de alergia a proteínas heterólogas;
7. Certificações
Como já citado, quem regulamenta tecnicamente os bancos de leite humano é a ANVISA, através da RDC 171/06. Além de regras de Boas Práticas que são familiares à quem trabalha na indústria, há especificação de metragem mínima dos ambientes e especificações técnicas para toda a cadeia que devem ser seguidas como pré-requisitos. O Programa Fiocruz de Certificação de Qualidade em Bancos de Leite Humano (PFCQ-BLH-SUS) inclui requisitos de qualificação recursos humanos (testes de proficiência), avaliação de equipamentos e instalações, controle de qualidade e processos. Nenhuma legislação para a indústria de alimentos possui uma referência de metragem e construção como a do item 5.3.1.2 da RDC 171. Os bancos certificados devem seguir os requisitos legais e normativos.
Mais referências:
Manual Bancos de leite humano: funcionamento, prevenção e controle de riscos.
As Normas Técnicas seguem o modelo adotado pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e estão disponíveis online.
Com informações de Food Safety Brazil.