Desenvolvimento de Artefatos de Comparação Laboratorial em Temperatura
Renato Nunes Teixeira, DSc.
Inmetro – Instituto Nacional de Metrologia e Tecnologia
Xerém – Duque de Caxias – RJ
A EIT atualmente em vigor é a Escala Internacional de Temperatura de 1990 (EIT-90) [1], definida por 17 pontos fixos de substâncias quimicamente puras, podendo ser pontos de solidificação, pontos triplos ou de fusão. Basicamente engloba uma faixa de temperatura que vai desde as temperaturas criogênicas, próximas ao zero absoluto, até a temperatura de solidificação do cobre (1084,62 °C).
Recentemente, o BIPM colocou em vigor o novo SI [2], onde as grandezas de base do sistema são definidas por constantes universais e não mais ficam referenciadas a artefatos físicos. No caso da temperatura, a unidade de temperatura termodinâmica Kelvin fica definida em termos da constante de radiação de Boltzmann e não mais como sendo 1/273,16 da temperatura do ponto triplo da água. Essa mudança é mais filosófica do que prática, uma vez que não haverá diferença entre a definição anterior e a atual. Inclusive essa foi uma condição para a sua aprovação, visto que qualquer modificação implicaria em altos custos para todos que necessitam medir temperatura em todas as aplicações.
Para temperatura, o novo SI também não impõe que sejam implementados os experimentos para reproduzir os valores de definição do Kelvin. Assim sendo, não é necessário realizar algum dos experimentos para medir a constante de Boltzmann e assim definir a unidade de temperatura. A realização do ponto triplo da água tal qual é feita hoje é plenamente compatível com a nova definição do Kelvin.
Apesar de poderem ser medidas temperaturas acima do ponto do cobre, os erros eventualmente cometidos ficam inaceitavelmente grandes à medida que nos afastamos dessa referência. Esse era um problema que já aparecia antes e continua a existir, devido à falta de pontos de referência para temperaturas acima de 1084,62 °C. A rastreabilidade dessas temperaturas se apóia em quaisquer um dos três pontos de referência da EIT-90, os pontos de solidificação da prata, ouro ou cobre, e a linearidade de um termômetro de radiação.
Na natureza até são encontradas substâncias com ponto de fusão (e solidificação) acima da temperatura de solidificação do cobre, o problema é manter a pureza dessas substâncias durante a sua utilização. Como o material que contém essas substâncias nas células de pontos fixos geralmente é o grafite (estado alotrópico do carbono), sob a forma de cadinhos, em altas temperaturas esses átomos de carbono migram para a matriz metálica, causando modificações na temperatura de realização. Esse é um processo contínuo, praticamente inviabilizando a utilização dessas substâncias. Também foram tentadas outras substâncias para fabricação dos cadinhos, como as cerâmicas à base de alumina (Al2O3) de alta pureza. Além do problema de contaminação também não ser evitado, sua fragilidade e susceptibilidade a choques térmicos não permitiram a sua utilização.
Entre o final do século 20 e a primeira década do atual, um pesquisador do instituto nacional japonês de metrologia (NMIJ), Yoshiro Yamada, propôs a utilização de ligas eutéticas metal-carbono como referência de temperatura acima do ponto fixo do cobre.
Basicamente |o Dr. Yamada descobriu que ao longo da curva de fusão de uma liga eutética metal carbono, havia um ponto de temperatura que apresentava um repetibilidade adequada para ser utilizado como referência de temperatura. Ao contrário das substâncias puras, que durante a mudança de fase apresentam temperaturas estáveis, no caso das ligas eutéticas isso não é possível. Não obstante, foi observado que o ponto de inflexão da curva de fusão dessas ligas eutéticas era altamente reprodutível.
Assim sendo, inúmeras substâncias foram então estudadas, primeiramente as de temperaturas mais baixas como o Fe-C (1153 °C) ou o Ni-C (1329 °C), até temperaturas extremamente elevadas como o Ru-C (1953 °C) ou o Ir-C (2292 °C) e outras substâncias, conforme tabela 1. Algumas dificuldades foram encontradas no desenvolvimento dessas células de pontos fixos de ligas eutéticas, como por exemplo técnicas de enchimento dos cadinhos, ou compatibilizar a expansão térmica da liga eutética com a do grafite utilizado.
Atualmente praticamente todos esses problemas foram resolvidos, graças à contribuição de vários pesquisadores dos Institutos Nacionais de Metrologia mais desenvolvidos do mundo.
Tabela 1 – Temperaturas das ligas eutéticas usadas em termometria
Eutético | Temperatura aprox. (°C) | |
Metal-Carbono | ||
Fe-C | 1153 | |
Co-C | 1324 | |
Ni-C | 1329 | |
Pd-C | 1492 | |
Rh-C | 1657 | |
Pt-C | 1738 | |
Ru-C | 1953 | |
Ir-C | 2292 | |
MetalCarbeto-Carbono | ||
B4C-C | 2386 | |
TiC-C | 2759 | |
ZrC-C | 2882 | |
HfC-C | 3185 | |
De forma a manter harmônica a realização da escala internacional de temperatura ao redor do mundo, são realizadas comparações laboratoriais envolvendo as diferentes regiões e sub-regiões metrológicas do mundo. Tais comparações envolvem diferentes tipos de sensores, de acordo com a faixa de temperatura pretendida, e são organizadas pelo Comitê Consultivo de Temperatura (CCT) do Bureau International des Poids et Mesures (BIPM), entidade que congrega especialistas na área, da maioria dos países signatários da convenção do metro.
As primeiras experiências de comparações laboratoriais utilizando células eutéticas revelaram um inconveniente, uma vez que as temperaturas de transição dessas ligas já eram conhecidas de todos, isso não garantia uma determinação de temperatura isenta pelos laboratórios participantes.
De forma a contornar esse problema, foi proposta a dopagem dessas ligas eutéticas com outras substâncias, de forma a alterar propositalmente e controladamente sua temperatura de transição [3]. Essa pesquisa foi inclusive tema de tese de doutorado deste autor, na PUC-Rio, em 2013 [4]. Nesse trabalho, foram dopadas células eutéticas de Ni-C com duas substâncias em duas concentrações diferentes. Basicamente, foi utilizado estanho como dopante para duas células, nas concentrações de 392 ppm e 828 ppm e cobre em outras duas células, nas concentrações de 4168 ppm e 7686 ppm. O efeito da dopagem pode ser observado na tabela 2. O projeto, enchimento e medição das células foi realizado no Inmetro, bem como toda a parte de caracterização e calibração do termômetro de radiação utilizado, KE-LP3.
Tabela 2 – Temperaturas das células
Célula | Temperatura °C |
Ni-C | 1328,72 |
Ni-C-Cu (4168 ppm) | 1328,46 |
Ni-C-Cu (7686 ppm) | 1328,40 |
Ni-C-Sn (392 ppm) | 1328,08 |
Ni-C-Sn (828 ppm) | 1327,82 |
Extensivos estudos revelaram que a temperatura foi modificada sutilmente e de forma diversa com as duas substâncias, mas o suficiente para ser utilizada como artefato de comparação laboratorial.
Todas as medições foram realizadas no Laboratório de Pirometria da então Divisão de Metrologia Térmica do Inmetro, sendo inclusive realizada comparação laboratorial [5] com o Laboratório de Termometria de Radiação do National Physical Laboratory (NPL) da Inglaterra, o qual recebeu duas células dopadas para medir sem que soubesse a priori a sua temperatura de realização. Além de demonstrar a viabilidade da sua utilização, essa comparação revelou que naquela ocasião (2012-2013), a escala de temperatura praticada no Laboratório de Pirometria estava plenamente compatível com a do NPL, como pode ser observado na tabela 3.
Tabela 3 – Resultado da Comparação Laboratorial do Inmetro com o NPL (UK)
Instituto | Temperatura (°C) | Incerteza (k=2) (°C) |
Inmetro (antes) | 1328,41 | 0,22 |
NPL | 1328,45 | 0,18 |
Inmetro (depois) | 1328,42 | 0,22 |
Trabalhos adicionais de estabilidade de longo prazo, [6] foram conduzidos e apresentaram excelente desempenho, de forma que na atual comparação – chave do BIPM (CCT-K10) [7] uma célula dopada, originalmente fornecida pelo Inmetro, fez parte dos artefatos envolvidos nessa comparação. A fase de medições dessa comparação já foi concluída e o primeiro relatório está em fase final de análise pelos participantes.
Pelas informações atualmente disponíveis no relatório preliminar, as células eutéticas dopadas são uma excelente opção para artefato de comparações interlaboratoriais em altas temperaturas, permitindo que se avalie a real capacidade de medição dos laboratórios participantes.
Referências Bibliográficas
[1] https://www.bipm.org/utils/common/pdf/ITS-90/ITS-90.pdf
[2] https://www.bipm.org/utils/common/pdf/si-brochure/SI-Brochure-9-EN.pdf
[3] Teixeira, R., Machin, G. & Orlando, A. Development of High-Temperature Fixed Points of Unknown Temperature Suitable for Key Comparisons. Int J Thermophys 35, 467–474 (2014). https://doi.org/10.1007/s10765-014-1571-y
[4] Teixeira, Renato Nunes; Orlando, Alcir de Faro; Machin, Graham. Development of high temperature comparison artefacts for radiation thermometry. Rio de Janeiro, 2013. 120 p. Tese de Doutorado – Departamento de Engenharia Mecânica, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
[5] Machin, G., Teixeira, R., Lu, X. et al. Bilateral Comparison Between NPL and INMETRO Using a High-Temperature Fixed Point of Unknown Temperature. Int J Thermophys 36, 327–335 (2015). https://doi.org/10.1007/s10765-014-1749-3
[6] Teixeira, R.N., Machin, G. Long-Term Stability Evaluation of a Sn-Doped Ni–C Eutectic Cell Suitable for Radiation Thermometry. Int J Thermophys 38, 80 (2017). https://doi.org/10.1007/s10765-017-2205-y
[7] https://www.bipm.org/kcdb/comparison/doc/download/903/cct-k10_technical_protocol.pdf
[[Artigo disponível na íntegra na Revista Analytica Ed 106]]