Pigmentos da natureza são base para aplicações tecnológicas
As cores são fontes de inúmeras informações. Num contexto social, elas estão presentes em símbolos e expressões — são como canais de comunicação. Pigmentos extraídos de produtos da natureza, como o mogno (preto, vermelho, laranja e marrom) e o açafrão (amarelo), são utilizados pelos povos indígenas da etnia Huni Kuin, localizada no Acre, na coloração de tecidos — e também em aplicações medicinais. Entender as diferentes tonalidades e apresentações de um pigmento na natureza pode nos ajudar a encontrar novas soluções para o nosso cotidiano, a partir de um produto que já está à disposição para estudos. A produção de materiais tecnológicos baseados em produtos naturais é uma linha de pesquisa adotada por alguns grupos no Instituto de Química (IQ) da USP — entre eles, o Grupo de Pesquisa Bastos. “A gente pega compostos que você encontra na natureza, seja em plantas, seja em fungos, e modifica esses compostos quimicamente, para eles terem uma aplicação que melhore a qualidade de vida das pessoas”, diz Erick Bastos, doutor em química orgânica, docente do Departamento de Química Fundamental do IQ e coordenador do laboratório.
Um dos pigmentos naturais estudados pelo grupo é a betalaína, encontrada na beterraba roxa e amarela, no cogumelo Amanita muscaria, na pitaya rosa e em flores como onze-horas e amarantus. Além da coloração intensa, uma das características da betalaína é a sua capacidade de capturar radicais livres, o que faz com ela tenha uma atuação antioxidante. Existe também outra propriedade que pode ser altamente explorada pelo setor tecnológico: a fluorescência. “A natureza não escolheu a betalaína como o seu pigmento principal de planta, escolheu a antocianina — que dá cor à uva, por exemplo. A parte interessante é que não existe nenhum ser vivo sobre a face da Terra que produz as duas classes de pigmentos; eles são – o que a gente tecnicamente diz – mutuamente exclusivos. E algumas flores pigmentadas por betalaínas amarelas fazem uma coisa sensacional: elas brilham no escuro, são fluorescentes”, explica Bastos. Ele conta que a fluorescência das flores é baixa, se comparada com a luz refletida. Então, quando olhamos para uma flor na luz do dia, vemos apenas um pouquinho do brilho dessa fluorescência. O desafio é explicar por quais motivos algumas flores têm essa característica. “Por conta dessas peculiaridades biológicas das betalaínas, elas se tornaram pigmentos de grande interesse, porque qualquer coisa que você descobrir a respeito delas é absolutamente [novo]. É pouco explorada a química desses compostos”.
Pigmentos naturais e suas aplicações
O ponto de partida são moléculas coloridas, fluorescentes e antioxidantes. Mas o que faz essas características se tornarem fontes para um possível uso tecnológico? O docente explica que, no caso da cor e do brilho, eles podem ser utilizados para indicar algo, como sensores: uma molécula que muda de cor na presença de oxigênio é um exemplo. “Isso é muito importante, porque se você tem uma célula que se torna tumoral, muitas vezes a permeação de oxigênio diminui; então, a quantidade de oxigênio fica muito baixa. Se a gente tiver as moléculas [fluorescentes] dentro das células que estão nessas condições de baixo oxigênio — que a gente chama hipóxia — o microscópio vai mostrar uma cor diferente das células que têm mais oxigênio. Um outro ponto é que a [intensidade da] cor é proporcional ao quanto de oxigênio tem, então a gente consegue quantificar”, exemplifica Bastos.
No caso de sensores ópticos, a betalaína pode ser utilizada em materiais chamados de “inteligentes’” ou foto-exclusivos, para indicar alterações e diferenças no meio. “A essência de um sensor óptico é que ele cause uma perturbação no meio em que ele está e a gente consiga identificar essa perturbação. Digamos que a molécula tem cor e, na presença de um analito qualquer, ela perde a cor, ou intensifica a cor, ou muda de cor. Vai depender de qual tipo de analito a gente vai trabalhar para ver a influência que ele vai ter dentro da estrutura da betalaína, que a gente chama de estrutura cromofórica da betalaína. Então, aquela estrutura que traz a cor para o composto vai ser afetada de alguma forma e nós vamos acompanhar geralmente essas três possíveis variações que acontecem de interação com o ambiente”, explica Fabiano Severo Rodembusch, doutor em síntese orgânica e docente do Instituto de Química Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Quando pensamos na propriedade antioxidante, por sua vez, ela pode ser utilizada como suplementação no combate a doenças associadas à formação excessiva de radicais livres. “Quando você começa a produzir um monte de radicais livres, o seu corpo fica no estado que a gente chama de estresse oxidativo — que é, fundamentalmente, uma inflamação generalizada. Aliado a outras condições, isto gera um monte de doenças que são fatais e que comprometem a qualidade de vida das pessoas, tipo síndrome metabólica, tipo câncer. Nesses casos, a suplementação com antioxidantes é muito bem-vinda, porque você retoma o balanço”, explica Bastos.
Na alimentação, em um produto que vai para o mercado, existe outro ponto determinante que está relacionado às modificações nesses compostos. No caso de um antioxidante extraído de uma beterraba, por exemplo, não há problemas — trata-se de uma composição natural. Porém, ao trabalhar em uma escala menor, modificando as moléculas desse antioxidante para um determinado alimento, são necessários inúmeros estudos para garantir que essas alterações não tenham um efeito indesejado, como toxicidade.
Além das aplicações voltadas à área da saúde e de cosméticos, esses produtos naturais, a partir da propriedade antioxidante, também podem ser usados em sistemas tecnológicos para intermediar processos eletrônicos. “Se você tiver uma nanopartícula para fazer um dispositivo eletrônico, ou se você tiver qualquer coisa que precise que a carga elétrica se mova, essas betalaínas ajudam. A gente consegue favorecer processos relacionados à eletricidade”, diz Erick Bastos.
Lidando com as cores: da natureza às prateleiras
Um ponto-chave para a aplicação dos compostos naturais nos diferentes produtos que temos contato no cotidiano é conseguir manter as propriedades desses compostos fora de seu espaço natural — seja a beterraba, uma flor ou outra matéria. No caso da cor, um exemplo dado por Bastos é o que acontece com as rosas. Se ao ar livre, de dia, as pétalas de uma rosa fossem retiradas e imersas em álcool, notaríamos que o líquido ficaria colorido. Mas, depois de algum tempo, essa cor sumiria. Aí está a questão-chave dos pigmentos naturais à base de betalaína: eles são instáveis fora de seu ambiente biológico. Ou seja, a molécula fica suscetível à quebra, o que resulta na perda de cor. A partir dessa constatação, pesquisadores do IQ e da UFRGS se uniram para propor uma maneira de estabilizar essas moléculas de pigmento.
Fabiano Rodembusch coordena o grupo Fotoquímica Orgânica Aplicada, que faz parte do projeto, e explica que quaisquer materiais que possam ser protegidos da degradação pelo efeito da luz e da temperatura podem viabilizar resultados importantes. “O que tem no dia a dia, que tem problema de fotoproteção, de ser termicamente instável? E aí a gente pensa: ‘bom, quem sabe os corantes alimentícios, quem sabe toda a química da cor”.
A ideia deu certo. Ao invés de buscarem a estabilização através de modificações na estrutura da molécula, os pesquisadores chegaram a esse resultado por meio do encapsulamento da betalaína. “Se você prepara um material com a chamada ‘química doce’ — que é uma química que não usa tanta temperatura, não usa catalisadores muito agressivos — e trabalha com um sistema em que você consegue ter um material homogêneo, encapsulado, com propriedades térmicas e ópticas aumentadas, isso pode ter uma aplicação tecnológica muito grande”, explica Rodembusch.
Para evoluir os resultados da pesquisa, está sendo desenvolvida uma patente para a criação de uma startup entre as universidades. “Essa é uma patente em conjunto das duas universidades, a gente criou um jeito de conseguir estabilizar [a betalaína]. Não foi mudando a molécula para ela ficar mais estável, a gente usou um outro caminho. Conseguimos grudar essa molécula numa estrutura que não deixa nada chegar até ela, portanto ela não quebra”, conta Bastos.
Ciência entre universidades e reflexões do fazer científico
Sem dúvidas, os resultados e as aplicações de um projeto científico são de extrema importância para a comunidade científica e para a sociedade, que se beneficia nesse processo. Para alcançar os resultados esperados, muitas vezes são necessários anos de estudo, o que vai de encontro com possíveis expectativas de um mercado que estimula a “pressa” nos processos, por exemplo. Com isso, a busca pela aplicação pode se tornar o principal motor de uma pesquisa, mas existem alternativas de mesma importância. “Se a gente começa a fazer pesquisa pensando em entender o que a gente está desenvolvendo, buscando compreender a interação da luz com a matéria, no nosso caso específico, e enxergamos ali uma potencial aplicação, aí vamos por esse caminho. Mas, para quem já começa a fazer pesquisa pensando na aplicação final, às vezes no caminho deixa de enxergar muita coisa”, diz o docente da UFRGS.
A colaboração entre as duas instituições demonstra outro ponto-chave para o fazer científico, que é estar aberto e atento para as produções e profissionais de outras localidades e especialidades. “Seja lá o que a gente precisa, a gente se cerca de um monte de gente e colabora com todo mundo para resolver uma questão científica que pode ser relevante para um número grande de pessoas”, diz Bastos.
Matéria – Jornal USP, Aldrey Olegario*
Imagem – Pitaia-vermelha (Hylocereus monacanthus)
Mais informações: e-mails elbastos@usp.br e rodembusch@iq.ufrgs.br
*Da Assessoria de Comunicação do IQ