O DNA oculto das doenças finalmente decifrado

Durante décadas, a biologia molecular concentrou sua atenção nos 2% do genoma humano responsáveis por codificar proteínas.
No entanto, a verdadeira complexidade da vida, e das doenças, parece residir justamente no que antes era considerado “silencioso”. As regiões não codificantes do DNA, que representam cerca de 98% do nosso material genético, escondem informações fundamentais para o controle da expressão gênica e, consequentemente, para o funcionamento celular.
Agora, pesquisadores do European Molecular Biology Laboratory (EMBL) acabam de dar um passo histórico: decifraram parte desse território desconhecido com uma tecnologia inédita chamada SDR-seq (Single-cell DNA–RNA sequencing). Essa inovação permite algo que antes era impossível: ler simultaneamente o DNA e o RNA de uma mesma célula, conectando variações genéticas à expressão gênica de forma direta e precisa.
O código invisível que molda a doença
Mais de 95% das variantes genéticas associadas a doenças humanas estão localizadas em regiões não codificantes, que não produzem proteínas, mas regulam quando e como os genes se expressam.
Até hoje, compreender a influência dessas variantes era um desafio: as técnicas de sequenciamento disponíveis não conseguiam correlacionar, célula a célula, o impacto dessas alterações sobre o comportamento molecular.
Com o SDR-seq, isso mudou. Pela primeira vez, a ciência consegue observar, dentro de uma única célula viva, onde está a mutação e qual é o seu efeito funcional. O método combina a análise genômica (DNA) e transcriptômica (RNA) em paralelo, revelando como determinadas variantes modulam a atividade dos genes.
Da descoberta à aplicação: o caso do linfoma
Para demonstrar o potencial da técnica, a equipe do EMBL aplicou o SDR-seq em células de linfoma B, um tipo de câncer do sistema linfático. Os resultados mostraram que células com um número maior de variantes genéticas apresentavam estados celulares mais agressivos e malignos, indicando uma correlação direta entre o genótipo e o fenótipo celular.
Essa observação abre uma nova era para a pesquisa biomédica: será possível mapear, com resolução de célula única, as bases moleculares de doenças complexas, como câncer, autismo, esquizofrenia e distúrbios cardiovasculares. O que antes era invisível, a regulação silenciosa do genoma, passa agora a ser um terreno explorável com ferramentas analíticas de alta precisão.
Implicações para a medicina de precisão
A SDR-seq inaugura uma nova fronteira da genômica. Com ela, cientistas podem rastrear mutações, prever comportamentos celulares e, no futuro, personalizar terapias com base no perfil genético e funcional de cada paciente. A técnica também promete acelerar a descoberta de biomarcadores e aprimorar diagnósticos precoces, especialmente em doenças cujo gatilho está em regiões até então inexploradas do DNA.
Trata-se de uma mudança de paradigma, mais do que uma inovação técnica: compreender que o DNA não é apenas um código estático, mas um sistema dinâmico de comunicação entre genes, células e ambiente.
O genoma fala (e agora conseguimos ouvi-lo)
A leitura simultânea de DNA e RNA de uma mesma célula representa um dos maiores saltos científicos desde o Projeto Genoma Humano. Ao integrar informações genéticas e funcionais, o SDR-seq aproxima a ciência de uma visão completa da vida em nível molecular.
O futuro da biologia e da medicina se desenha aqui: nas entrelinhas do genoma, onde cada variação carrega um significado e cada célula revela um novo capítulo da história das doenças humanas.