A Virada Estratégica do Controle de Qualidade Orientado a Risco

Por muito tempo, o Controle de Qualidade (CQ) foi entendido como uma etapa final, um “portão” que filtra o que pode ou não seguir para produção, mercado ou paciente. Era uma postura reativa: medir, comparar ao especificado e registrar. No entanto, a realidade contemporânea, seja em farmacêuticos, cosméticos, alimentos, químicos, petróleo ou diagnóstico, deixou claro que medir já não é suficiente. A exigência agora é interpretar, contextualizar e antecipar.

Estamos entrando na era do Controle de Qualidade orientado a riscos (Risk-Based Quality Control), onde o valor da informação analítica não está no número em si, mas nas decisões que ele sustenta.

Esse movimento não é teórico. Ele nasce de três vetores que estão transformando o cenário global:

  1. Adoção do ciclo de vida de métodos analíticos (impulsionado pela revisão do ICH Q2(R2) e Q14).

  2. Pressão regulatória e econômica para reduzir retrabalho, desperdícios e variações não controladas.

  3. Crescimento da inteligência analítica baseada em dados históricos e monitoramento contínuo da performance de métodos.

O CQ deixa de “cumprir tabela” e passa a pensar estrategicamente.

Da validação estática à performance dinâmica

No modelo tradicional, métodos são validados uma vez e, teoricamente, permanecem “válidos” por tempo indeterminado, mesmo que colunas envelheçam, matrizes mudem, fornecedores variem e equipes se renovem.

No modelo orientado a risco, a pergunta central muda:

O método continua confiável para a decisão que preciso tomar hoje?

Isso implica:

  • Revisões periódicas guiadas pela performance histórica;

  • Monitoramento de parâmetros críticos (ex.: fatores de retenção, resolução, ruído de baseline, respostas internas);

  • Análise de tendência para detectar deriva lenta antes que ela gere um OOS.

Ou seja: o laboratório deixa de apagar incêndios para prevenir o incêndio antes da fumaça.

Não é sobre fazer mais, é sobre fazer melhor

O controle orientado a risco não aumenta a carga de trabalho. Pelo contrário: racionaliza.

Ele pergunta:

  • Quais ensaios realmente agregam segurança ao processo?

  • Onde há redundância que poderíamos eliminar?

  • Quais pontos do método são sensíveis e merecem vigilância contínua?

  • Onde o impacto de um desvio é crítico — e onde não é?

Quando o risco é o eixo, o laboratório deixa de realizar testes por “tradição” e passa a executar o que tem significado.

A estatística deixa de ser obstáculo e passa a ser lente

Ferramentas como PCA, PLS, Monte Carlo, Shewhart, EWMA, gráficos de tendência, análise de outliers ganham valor quando deixam de ser jargão acadêmico e se tornam instrumentos de decisão.

Não se trata de complicar. Trata-se de ver.

Ver a coluna que está degradando antes do colapso.

Ver o padrão de repetição de retrabalho.

Ver a participação oculta de um parâmetro no desvio.

Ver o comportamento do método, não apenas o resultado.

QC orientado a risco é QC que enxerga.

E quando o laboratório enxerga, ele deixa de ser apoio — e passa a ser estratégia

A mudança é cultural.

  • O CQ participa das decisões de formulação.

  • Opina na definição de fornecedores.

  • Influencia planejamento de estudos de estabilidade.

  • Embasa alterações de processos.

  • Sustenta farmacovigilância e cosmetovigilância.

  • Conecta a análise ao impacto real.

O laboratório deixa de ser coadjuvante e assume o papel de inteligência operacional da empresa.

Conclusão

A pergunta que define a nova era é simples:

O laboratório existe para dizer se o produto está conforme, ou para garantir que ele continue seguro, eficaz e consistente ao longo do tempo?

A primeira resposta pertence ao passado.

A segunda define o presente e, sobretudo, o futuro.

A transição já começou.

O laboratório que mede é importante.

O laboratório que interpreta e prevê é indispensável.

E é exatamente nesse ponto que o Controle de Qualidade deixa de ser rotina, e se torna estratégia e propósito.

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