A Crise Hídrica Brasileira e o Desvirtuamento da Gestão e Governança da Água
Doutor em Ciências Sociais (UFCG) e em Direito (UFPB). Professor do Mestrado em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos em Rede Nacional – Profágua da Universidade Federal de Campina Grande em parceria com a Universidade do Estado de São Paulo (UNESP)
O Brasil está passando por um período de escassez hídrica bastante severa que coloca em risco o nível dos reservatórios nacionais, principalmente aqueles destinados à produção de energia por meio de turbinas nas usinas hidrelétricas. O país é consideravelmente dependente dessa matriz energética, o que certamente demanda tomada de decisão no sentido de mitigar os efeitos da escassez de água, especialmente no que se refere a um potencial racionamento energético que ninguém deseja, uma vez que afetaria todo o país, notadamente as atividades econômicas em geral, o que seria potencializado pelo contexto de pandemia que se está vivendo.
Tudo isso é compreensível, se não fosse a edição da Medida Provisória n. 1055, no dia 28 de junho do corrente ano. Essa medida com força de lei e eficácia imediata estabelece a Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética com o objetivo de estabelecer medidas emergenciais para a otimização do uso dos recursos hidroenergéticos e para o enfrentamento da atual situação de escassez hídrica. Destaca-se que a Constituição de 1988 atribui à União a titularidade sobre os potenciais de energia hidráulica (art. 20, inc. VIII). Por conseguinte, a lei n. 9.433/1997 atribui à necessidade de concessão de outorga pelo poder público para que haja o uso dos recursos hídricos para geração de energia elétrica, ficando esta subordinada às regras do Plano Nacional de Recursos Hídricos.
É importante perceber que os dispositivos citados e os demais que compõem parte do ordenamento jurídico que trata especificadamente da gestão e governança dos recursos hídricos no país tem como centro a água e não a energia, afinal a segunda é produzida pela primeira. Da forma como está posta a medida provisória mais parece que a água é mera coadjuvante e que o principal mesmo é assegurar a produção de energia elétrica, lembrando que sem água não haverá energia.
Além disso, é importante destacar que essa Câmara é formada apenas pelos ministérios de Minas e Energia, que a presidirá; da Economia; da Infraestrutura; da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; do Meio Ambiente; e do Desenvolvimento Regional. Pasmem, não está presente a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) que faz as vezes de autoridade de água no país, a quem compete a regulação dos recursos hídricos; e nem o Conselho Nacional de Recursos Hídrico (CNRH), órgão de planejamento e deliberação, também integrante do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH) e cujas atribuições presentes no art. 35 da lei n. 9.433/1997 denotam a sua relevância e imprescindível presença em qualquer decisão relacionada com a água no país.
Isso é grave, na medida em que retira desse ator a possibilidade de participar como protagonista nas decisões em momento tão crucial de escassez de água. É momento de enaltecer as prerrogativas dessa agência, que é uma autarquia de natureza especial (art. 3º, lei n. 9.984/2000), o que confere a ela autonomia administrativa e financeira, além de fazer parte do SIGREH e ser responsável pela implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos.
Tal medida descaracteriza a finalidade precípua do SINGREH, pois o sistema elétrico nacional e tudo mais que o compõe deve ser pensado a partir da água e não o contrário. Para além disso, a norma ora em análise, fere frontalmente o fundamento da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), presente na lei 9.433/97, no seu art. 1º, inc. 6º, que estabelece como fundamento dessa política pública essencial para a sobrevivência de toda forma de vida a gestão dos recursos hídricos que, obrigatoriamente, deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades. Ora, se ela deve ser descentralizada, tem-se uma medida que centraliza o sistema, excluindo a entidade que cuida das águas no país e todo e qualquer outra forma de regulação.
Repita-se, entende-se aqui o momento grave de escassez hídrica que se abate ciclicamente sobre os corpos d’água nacionais e que são essenciais para a produção de energia, que também é vital. Porém, as perguntas que devem ser feitas são as seguintes: A crise hídrica justifica uma modificação de tal porte no sistema de regulação de água no país? Isso não abre espaço para outras medidas similares que anulam ou interferem nas atribuições autônomas e independentes das agências reguladoras?
Fonte: ESTADÃO