A contribuição do Brasil no desenvolvimento das normas internacionais de sistemas de gestão
Acad. Nigel H Croft
Iniciaremos nossa história de sistemas de gestão nos anos 70. Naquela época, tanto ao nível mundial, como no Brasil, o grande impulso para estimular empresas (principalmente na área de manufatura) a implementarem sistemas de “Garantia da Qualidade” veio da indústria bélica, petroquímica, nuclear e aeroespacial. Muitas empresas brasileiras utilizaram normas como a MIL-Q-9858 dos EUA, a AQAP 1 dos países da OTAN, e outras, para desenvolver seus sistemas, sobre pressão de seus clientes nestas áreas de negócio. Clientes e entidades como Embraer, Engesa, Avibrás, CTA (Centro de Tecnologia Aeroespacial), Petrobras, IBQN e outras começaram a implementação destas normas por conta própria e estimularam a sua adoção entre seus fornecedores. Mesmo empresas que não atuavam nestes ramos aproveitaram das mesmas normas para nortear seus trabalhos, por falta de alternativas viáveis.
Os primeiros passos no sentido de tornar as normas “militares” mais genéricas foram feitos com a publicação, em 1974, da norma britânica BS 5179, que tratava de sistemas de “controle de qualidade”. Em 1979 esta norma foi substituída pela BS 5750 “Sistemas da Qualidade – Especificação para projetos e desenvolvimento, produção e instalação”. Neste mesmo ano de 1979 foi formalmente constituído o Comitê Técnico TC176 da ISO, com a atribuição de desenvolver normas internacionais sobre “Gestão da Qualidade”.
A ISO (Organização Internacional de Normalização) é uma entidade não governamental, fundada em 1947. Hoje (base março 2018) conta com 161 membros representando organismos nacionais de normalização do mundo inteiro, entre eles a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), que foi membro-fundador. Por meio de seus membros, a ISO reúne especialistas para compartilhar conhecimentos e desenvolver Normas Internacionais voluntárias relevantes para o mercado, que apoiam a inovação e oferecem soluções para desafios globais. Ao contrário da crença popular, ISO não é uma sigla incorreta de “International Organization for Standardization”, e sim uma palavra que vem do grego “ISOS” significando algo que é uniforme ou homogêneo (como em isobárico, isotérmico ou, para os de mente mais geométrica, “triângulo isósceles”).
Ao promover uma normalização além das fronteiras, o objetivo mais amplo da ISO hoje é de facilitar o comércio internacional e o desenvolvimento sustentável. A ISO publica normas internacionais para uma vasta gama de assuntos, sempre baseadas em consenso internacional entre especialistas reconhecidos, nomeados por seus respectivos organismos nacionais. Atualmente, as normas publicadas pela ISO abrangem uma extensa série de especificações de produtos e serviços, métodos de inspeção e de teste, assim como requisitos de sistemas de gestão, avaliação da conformidade e outros assuntos.
Depois da publicação de uma norma para definir o vocabulário da qualidade (a ISO 8402:1986), os trabalhos iniciais do comitê ISO/TC176 concluíram com a publicação da primeira versão das normas “da série ISO 9000” no dia 15 de marco de 1987. Por coincidência, neste mesmo ano foi publicado o famoso “Relatório Brundtland” intitulado “Nosso Futuro Comum” que foi apresentado à Assembleia Geral da ONU, e deu luz ao conceito de “Desenvolvimento Sustentável”, definido como “desenvolvimento que satisfaz as necessidades atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras para satisfazerem as suas próprias necessidades”. Desde então, as normas da série ISO 9000 (bem como outras normas de sistemas de gestão mais recentes) têm caminhado “de mãos dadas” com a evolução dos conceitos de desenvolvimento sustentável como mostram as Figuras 1 e 2.
Tudo com participação ativa do Brasil, que sediou diversas reuniões da ISO, e cujos representantes nomeados pela ABNT têm ocupado posições de liderança nos diversos comitês técnicos da ISO associados com o desenvolvimento de normas como (entre outras):
- Série ISO 9000 (Gestão da Qualidade)
- Série ISO 14000 (Gestão Ambiental)
- ISO/IEC 27001 (Segurança de Informações)
- ISO 21101 (Gestão da segurança no turismo de aventura)
- ISO 21401 (Gestão da sustentabilidade para meios de hospedagem)
- ISO 22000 (Segurança Alimentar)
- ISO 26000 (Responsabilidade Social)
- ISO 50001 (Gestão de Energia)
- ISO 37001 (Gestão antissuborno)
- ISO 45001 (Gestão da saúde e segurança ocupacional)
Atualmente a ISO dispõe de um portfólio de mais de 26.000 normas das quais a série ISO 9000 relacionada à gestão da qualidade é, sem dúvida, a mais conhecida. Dentro dessa série, a ISO 9001 (“Sistema de gestão da qualidade – Requisitos”) é amplamente usada por organizações em todo o mundo a fim de demonstrar que elas possuem um conjunto de processos claramente definidos e bem gerenciados que as permite fornecer regularmente produtos e serviços que atendem os requisitos do cliente, bem como requisitos regulamentares e estatutários aplicáveis.
A última pesquisa da ISO mostra que mais de um milhão de certificações pela ISO 9001 foram emitidos no mundo todo, ilustrando a importância global desta norma. É claro que não há obrigação de se buscar certificação segundo uma norma ISO, mas muitas empresas escolhem essa opção para transmitir confiança ao mundo externo de que tomaram medidas para assegurar que seus produtos e serviços atendem consistentemente aos requisitos dos clientes. Depois dos passos iniciais relativamente tímidos no Brasil (conforme o site da ISO, em 1993 o mercado brasileiro contava com apenas 113 certificações válidas), a certificação cresceu ao longo dos anos, alcançando em 2018 um patamar de cerca de 20.000 certificados acreditados.
No ano de 1992 a ABNT criou o Comitê Brasileiro CB-25 para coordenar a coleta das opiniões e posições das partes interessadas brasileiras para que as mesmas pudessem ser consideradas durante as reuniões internacionais do ISO/TC176. Entre outras participações, especialistas brasileiros nomeados pelo ABNT/CB-25 ocuparam posições de destaque conforme segue:
- No desenvolvimento dos “8 Princípios de Gestão da Qualidade” nos meados dos anos 90, que formaram a base para ISO 9001:2000;
- No desenvolvimento do modelo de “abordagem de processos” que foi introduzido na ISO 9001:2000;
- Na liderança e coordenação do Grupo de Interpretações da ISO 9001;
- Na liderança do grupo responsável pela coordenação da transição da versão 1994 para a versão 2000 da norma ISO 9001 (junto com o Comitê de Avaliação da Conformidade da ISO – ISO/CASCO) e o Foro Internacional de Acreditação – IAF);
- Na presidência do Subcomitê 1 do ISO/TC176 (responsável pela norma ISO 9000);
- Na presidência do Subcomitê 2 do ISO/TC176 (responsável pelas normas ISO 9001 e ISO 9004, entre outras);
- No Grupo de Coordenação Técnica da ISO (“Joint Technical Coordination Group”) responsável pelas diretrizes de harmonização da estrutura, vocabulário e conteúdo para as diversas normas de Sistemas de Gestão (Ver Fig 2);
- No Grupo de Planejamento Estratégico entre ISO, IAF e ILAC (Cooperação Internacional de Acreditação de Laboratórios) destinado a assegurar a credibilidade das certificações ISO 9001;
- Na liderança do grupo “Integridade da marca ISO 9000” do ISO/TC176.
A própria norma ISO 9001 também evoluiu ao longo dos anos. Inicialmente, a versão 1987 era muito prescritiva, induzindo empresas a desenvolver sistemas “engessados”, com uma base pesada de procedimentos e registros (tipicamente um procedimento para cada uma das 20 cláusulas da norma). Alguns consultores jogaram lenha na fogueira vendendo “pacotes” de documentação como se fossem varas de condão para “implantar a qualidade”, mas que pouco refletiam a realidade da organização específica que, às vezes, estava apenas buscando uma certificação para poder participar em certos mercados.
A adoção da “abordagem de processos” na versão 2000 da ISO 9001 alinhou a norma com a realidade das organizações, e tornou a sua aplicação mais apropriada para pequenas e médias empresas (PMEs), bem como aquelas atuando na área de serviços; colocou mais ênfase nos resultados ao invés de focalizar na parte documental. A ISO 9001 exige (e sempre exigiu) um “SGQ documentado”, e não um “sistema de documentos”. O foco deve ser na gestão dos processos e suas interações de forma a atingir os resultados esperados (no caso da ISO 9001 “produtos e serviços conforme as expectativas dos clientes”). Claro que um certo número de documentos pode ser necessário, ou até desejável. Podem ser citados, por exemplo, procedimentos, instruções de trabalho, listas de verificação etc., que ajudam na gestão da rotina, na manutenção da memória técnica (“conhecimento organizacional”), identificação e solução de problemas, e oportunidades de melhoria. Entretanto, a extensão da documentação deve depender do contexto da empresa incluindo, por exemplo, o ramo em que atua, as exigências de seus clientes e eventuais requisitos legais. Uma pequena empresa, atuando numa área de negócios simples poderia eventualmente gerenciar suas atividades de forma muita eficaz com pouca documentação. Por outro lado, se a empresa atua numa área de alto risco (como a indústria nuclear ou aeroespacial) pode esperar que seus clientes e entidades regulamentadoras continuem exigindo muito em termos de documentação (com razão!), e a empresa, se quiser continuar como fornecedor, terá que atendê-los.
A última versão da norma, ISO 9001:2015, é aplicável a qualquer tipo de organização – grande ou pequena, privada ou pública, na manufatura, prestação de serviços ou outros setores econômicos, mas leva em consideração que cada organização é diferente e única. Por esta razão a ISO 9001:2015 requer que as organizações determinem o contexto específico no qual operam, de forma a garantir que o seu sistema de gestão seja apropriado à sua realidade.
Compreender o contexto pode ser entendido como uma atividade de observação, análise e avaliação do interior e exterior da organização, ao nível estratégico, para determinar fatores que a influenciam, tanto positivamente como negativamente. Estes fatores podem ser ligados à infraestrutura da região; à disponibilidade e nível educacional da mão-de-obra; à qualidade de serviços de internet, à legislação relevante e muitos outros fatores. Dificilmente a organização poderá influenciar estas questões externas, mas a sua forma de operar para alcançar os objetivos pretendidos terá que levá-las em consideração.
Identificar as questões internas significa entender a realidade da organização: quem é, o que faz, com que recursos, com que pessoas. A identificação das questões internas pode ser facilitada considerando-se fatores associados aos valores, à cultura, ao conhecimento e desempenho da organização e ao processo de tomada de decisões.
A ISO 9001:2015 é baseada em três conceitos chave, como mostra a Figura 3:
- um entendimento claro dos processos organizacionais e de suas interações para assegurar a conformidade do produto ou serviço com as expectativas dos clientes;
- a aplicação da “mentalidade de risco” para nortear o grau de rigor necessário para planejar e monitorar estes processos, e
- a utilização da metodologia PDCA (Plan-Do-Check-Act) nos processos individuais e no sistema como um todo.
Um estudo recente realizado no Brasil pelo Inmetro – Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia junto com a UNIDO(Organização das Nações Unidas para Desenvolvimento Industrial)1 enfatizou as grandes vantagens para a economia brasileira que a certificação ISO 9001 trouxe às empresas. Uma pesquisa realizada entre compradores brasileiros (que utilizam a norma amplamente como base para seleção de seus fornecedores) e organizações certificadas, demonstrou que, de forma geral, os compradores pesquisados estavam satisfeitos com o desempenho de seus fornecedores certificados na ISO 9001 (com algumas poucas exceções) e avaliaram a atuação dos fornecedores certificados como “melhor” ou “muito melhor” do que os fornecedores não-certificados. A grande maioria das organizações certificadas ISO 9001 considerou que tanto as auditorias iniciais como as de supervisão conduzidas pela certificadora foram profissionais, imparciais, rigorosas e com valor agregado, e mais de 98% consideraram que o investimento em seu SGQ foi “bom” ou “muito bom”.
Entretanto, é sabido que simplesmente entregar produtos e serviços que atendam às necessidades e expectativas dos clientes pode não ser suficiente para assegurar o sucesso (ou até a sobrevivência) de uma empresa. Além de serem eficazes, as organizações bem-sucedidos a longo prazo precisam ser eficientes e levar em consideração as necessidades e expectativas de outras partes interessadas, além dos clientes contratuais. A norma ISO 9004 (também desenvolvida com forte participação do Brasil) fornece diretrizes de como alavancar o sistema de gestão da qualidade para assegurar este “sucesso sustentado” da empresa.
Também, empresas bem-sucedidas precisam levar os conceitos da qualidade para outras vertentes, como o desempenho ambiental, a saúde e segurança do trabalho, as questões de responsabilidade social, entre outras. Isso levou a ISO a desenvolver uma série de normas de gestão, algumas das quais estão mencionadas na Figura 2. A ISO 26000, por exemplo, fornece diretrizes para que uma organização possa operar de forma socialmente responsável, conduzindo suas atividades de forma ética e transparente, para que contribua para a saúde e o bem-estar da sociedade. A implementação de seus conceitos pode ser facilitada quando a empresa possa aproveitar da estrutura e disciplina já existente num sistema de gestão da qualidade.
Para resumir, os conceitos de gestão da qualidade têm evoluído muito ao longo dos últimos 50 anos e hoje as normas da série ISO 9000, desenvolvidas com bastante participação do Brasil, fornecem uma base sólida para o sucesso sustentado das empresas que as abraçam de forma saudável.
Propondo manter a significativa representação brasileira nos fóruns internacionais de normalização de sistemas de gestão, cujos resultados impactam posição do Brasil no atendimento com qualidade do mercado interno e da exportação de bens e serviços, apresenta-se ainda algumas sugestões:
ZELAR pela continuidade da participação efetiva do Brasil no desenvolvimento e aperfeiçoamento de normas internacionais de sistemas de gestão, através da ABNT, de tal forma que reflitam as necessidades e expectativas dos usuários brasileiros, tanto no contexto nacional como no âmbito internacional.
FORMAR E/OU REATIVAR Grupos de Apoio Técnico (GAT) dentro dos Comitês Brasileiros da ABNT para desenvolver e consensar orientações a serem dados aos representantes brasileiros nos diversos Comitês Técnicos da ISO, de tal forma que realmente reflitam as opiniões das diversas partes interessadas nacionais.
DIVULGAR às partes interessadas nacionais as metodologias e processos utilizados pela ISO no desenvolvimento de normas internacionais.
ENFATIZAR a necessidade de critérios rigorosos para a seleção dos especialistas a serem nomeados pelo país de atuar de forma autônoma na fase inicial de preparação da norma internacional (Working Draft – WD) e de defender as posições nacionais nas fases subsequentes (Committee Draft – CD) e Draft International Standard – DIS).
AGILIZAR a circulação de CDs e DISs aos Comitês Brasileiros, para facilitar debate e a submissão de votos e/ou comentários, que realmente refletem as opiniões das partes interessadas brasileiras, em tempo hábil.
ESCLARECER melhor a relação entre normas voluntarias desenvolvidas pela ISO e ABNT, e os regulamentos técnicos (mandatórios) publicados por órgãos do governo.
1 “Impacto da Certificação dos Sistemas de Gestão da Qualidade ISO 9001 no Brasil” United Nations Industrial Development Organization, Vienna, Austria 2016; https://www.unido.org/sites/default/files/2017-01/ISO_9001_Brazil_portu_0.pdf
Com informações de Academia Brasileira de Qualidade (ABQ).