Alternativa natural, óleos essenciais evitam contaminação de cachaça orgânica
Conhecidos na indústria alimentícia por seu uso como aromatizantes, os óleos essenciais já desempenharam outras funções: de conservantes naturais a suplemento nutricional para bovinos. Além da ação antifúngica e antioxidante, óleos essenciais de tomilho e orégano foram testados na produção de cachaça orgânica e apresentaram ação antimicrobiana contra bactérias lácticas – uma contaminação comum no processo de fermentação do caldo de cana.
Os experimentos foram realizados por pesquisadores da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da USP em Pirassununga, utilizando amostras reais de caldo de cana, provenientes de usinas brasileiras. O objetivo foi garantir a carga microbiana naturalmente vinda do campo, aproximando o estudo da realidade dos produtores orgânicos.
Mas garantir a qualidade das amostras e promover o controle bacteriano da bebida não era o suficiente para se chegar a uma boa cachaça. O grupo conseguiu desenvolver um método de fermentação ideal, para que a concentração dos óleos essenciais não comprometesse a ação das leveduras comerciais mais utilizadas na indústria.
Os resultados foram publicados no International Journal of Food Microbiology e o método fermentativo baseado em óleos essenciais de tomilho e orégano está em processo de registro de patente.
Amanda Cristina Dias de Oliveira, primeira autora do estudo, explica que a ação antimicrobiana dos óleos essenciais é bastante conhecida em carnes, por estenderem a vida útil de prateleira e atuarem contra patógenos que podem causar doenças nos consumidores. “No caso das bebidas, é um campo ainda pouco explorado. Então a gente pensou nesse produtor de cachaça orgânica, que pode usar isso como um antimicrobiano natural, evitando essa grande contaminação e a necessidade de usar um controle ácido”, destaca Amanda, atualmente doutoranda do Laboratório de Microbiologia e Micotoxicologia de Alimentos da FZEA.
“A gente sempre tenta pensar em antimicrobianos naturais, que agridem menos e que podem contribuir com os ODS [Objetivos de Desenvolvimento Sustentável] para a indústria, inovação e infraestrutura, assim como para produção e consumo responsáveis”, aponta Eliana Setsuko Kamimura, professora do Departamento de Engenharia de Alimentos da FZEA, coordenadora do Laboratório de Engenharia de Bioprocessos e coautora do artigo.
De acordo com o Ministério da Agricultura e Pecuária, o Brasil registrou 1.217 cachaçarias em 2023. No mesmo ano, o valor total de exportações do produto superou os US$ 20 milhões, o maior montante da série histórica desde 2011. Paraguai, Alemanha, Estados Unidos, Portugal e França são os cinco principais destinos da cachaça exportada pelo Brasil.
Eficiência e baixo impacto ambiental
Oliveira explica que a contaminação microbiológica durante o processo de fermentação da cana-de-açúcar é a grande vilã de grandes e pequenos produtores. Embora o destilado da cana seja produzido a partir de um processo de fermentação controlado, a fermentação – assim como a contaminação – começa desde a colheita. “É tanto açúcar disponível no momento que você colhe a cana, e os microrganismos que estão no ambiente já começam pequenos processos fermentativos ali mesmo. Essa microbiota que está na terra, na planta, no ar, entra em contato com todo esse carboidrato”, diz.
Durante a fermentação do caldo de cana, uma guerra invisível acontece entre os microrganismos indesejados e as leveduras de fermentação, responsáveis por transformar o açúcar em álcool e álcoois necessários para o produto final. “Esses microrganismos que vieram do campo vão competir com essas leveduras por todo aquele açúcar disponível, e aí eles acabam sendo um contaminante microbiológico no processo fermentativo, além de reduzirem a eficiência da fermentação.”
Leveduras selvagens – “ruins” para o processo de fermentação – e até bactérias podem produzir compostos que comprometem toda a estrutura da produção. “A Leuconostoc, por exemplo, é uma bactéria láctica que produz a dextrana, um polissacarídeo que é um problema nas nossas usinas sucroalcooleiras”, aponta Eliana Kamimura. A dextrana indica perda de açúcar e pode aumentar a viscosidade do caldo e gerar cristais, o que também afeta o valor da venda.
A contaminação pode ser ainda maior quando a cana colhida é mal armazenada, e não é imediatamente processada. Para lidar com a descontaminação, a indústria pode se valer tanto de antibióticos quanto do ácido sulfúrico, que atua elevando o PH da solução e levando ao controle das bactérias. “É um controle barato. A indústria química ainda é mais acessível”, lembra a professora.
Além do baixo impacto ambiental, os óleos essenciais de tomilho e orégano utilizados nos experimentos da pesquisa serviram como controle preventivo de proliferação em três cepas de bactérias ácido-lácticas. A pesquisa também conseguiu identificar que o tratamento com óleos essenciais de tomilho e orégano apresentou uma produção de bioetanol cerca de 3% maior do que o tratamento sem nenhum antimicrobiano.
“Se você está produzindo uma cachaça orgânica, o controle ácido não é interessante para o seu processo. Além do que, quando se fala em óleos essenciais, a quantidade utilizada [para conseguir proteção] é muito menor do que a indústria usa [com ácidos]”, afirma Amanda Oliveira.
Cachaça saborizada?
Anteriormente, o grupo já havia descrito os impactos da contaminação microbiana no processo de fermentação de etanol e cachaça. Depois de comprovarem a eficácia dos óleos essenciais como antimicrobianos naturais, o desafio a seguir foi encontrar a medida ideal da concentração.
“Para cada bactéria que a gente estudou, a gente definiu uma concentração mínima inibitória. E como a gente pensava no processo fermentativo, também testamos [a concentração] na levedura, para saber quanto desse óleo essencial inibiria a nossa levedura, porque essa seria a concentração que a gente iria evitar”, detalha Amanda Oliveira.
Diversos testes de concentração foram feitos, inclusive para identificar a ação isolada e sinérgica dos óleos essenciais de tomilho e orégano, que contam com grandes quantidades de timol e o carvacrol em sua composição. Esses compostos químicos auxiliam não apenas na atividade antibacteriana, mas também têm ação antioxidante.
“Fizemos testes, replicações, controlamos a temperatura e finalmente partimos para a validação experimental. Também fizemos um experimento controle, que é o processo fermentativo padrão, sem o controle antimicrobiano. Porque para os pequenos produtores, no mundo ideal, seria entrar com o caldo de cana, fermentar ele e pronto”, lembra Eliana Kamimura.
Na comparação, o controle antimicrobiano com uso dos óleos essenciais de tomilho e orégano apresentou uma diferença estatística significativa após 12 horas de fermentação, chegando a 95% de confiança. O próximo passo da pesquisa será realizar um teste de análise sensorial, com um grupo de 120 pessoas, para descobrir a percepção do público sobre o sabor final da cachaça orgânica tratada com óleos essenciais.
“Estamos bem animados, porque se o nosso público considerar que essa vai ser uma cachaça aromatizada, por ser um destilado, a gente pensa em utilizar para gastronomia, ou mesmo uma cachaça, que é toda brasileira, com um aroma herbal. Como se fosse um gin”, conclui Eliana Kamimura.
O estudo Application of essential oils as natural antimicrobials in lactic acid bacteria contaminating fermentation for the production of organic cachaça pode ser lido aqui.
Mais informações: amandacdo@usp.br, com Amanda Cristina Dias de Oliveira, e elianask@usp.br, com Eliana Setsuko Kamimura
Matéria – Jornal da USP, Texto: Tabita Said
Arte: Simone Gomes
Imagem – Etapas de destilação – Análises microbiológicas – pesquisa também conseguiu identificar que o tratamento com óleos essenciais de tomilho e orégano apresentou uma produção de bioetanol cerca de 3% maior. Etapas de destilação e análises microbiológicas foram realizadas no Laboratório de Engenharia de Bioprocessos da FZEA – Fotos: Cedidas pelas pesquisadoras