Saliva de inseto tem potencial para ajudar a produzir energia sustentável
Pesquisadores da USP identificaram, em material genético de pequenas moscas, 137 enzimas especialistas na degradação de paredes celulares de plantas e fungos, conhecidas cientificamente como CAZymes, enzimas ativas em carboidratos. É a primeira descrição de CAZymes em mosquitos da família Sciaridae, composta de espécies de insetos cuja fase larval ocorre principalmente no solo, onde se alimentam de material vegetal parcialmente decomposto. O achado revela a importância destes insetos no ciclo do carbono, e também pode ser um pontapé inicial para futuros usos de sua saliva no campo da biotecnologia, bem como em biocombustíveis.
A descoberta ocorreu durante o sequenciamento do DNA genômico da mosca Pseudolycoriella hygida, espécie isolada pela primeira vez em 1965 no campus da USP em Ribeirão Preto e estudada desde então por diversos centros de pesquisa do Brasil. No trabalho, realizado pelos pesquisadores Vitor Trinca, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, e sua orientadora, a professora Nadia Monesi, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP, foram encontradas as CAZymes na saliva do inseto, confirmando seu potencial para digerir polissacarídeos (carboidratos que são considerados polímeros naturais) da parede celular das plantas.
Essa capacidade, avaliam os pesquisadores, transforma o inseto em um dos protagonistas no ciclo de carbono – um ciclo biogeoquímico no qual o elemento carbono passa da atmosfera para os organismos vivos, retornando, após a decomposição, para a atmosfera. O carbono está presente em todas as moléculas orgânicas, sendo um elemento essencial para a vida.
Ao explicar o ciclo de carbono, um dos autores da pesquisa, o professor Richard John Ward, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, ensina que os decompositores (insetos, fungos e bactérias) degradam matéria orgânica durante o processo de alimentação, utilizando as moléculas liberadas como nutrientes. Estes organismos são consumidos por outros, assim estabelecendo uma cadeia trófica (alimentar). “Nos trópicos, insetos também contribuem com uma fração significativa do ciclo de carbono. A larva de P. hygida secreta saliva contendo CAZymes no meio externo, que iniciam o processo de degradação de material vegetal, e continuamente ingere material parcialmente decomposto”, afirma Ward.
Além da importância para o meio ambiente, favorecendo a recaptação de carbono e a mineralização do solo, a atividade das substâncias da saliva desses insetos apresenta potencial para aplicações biotecnológicas. Informam os pesquisadores que a função de degradação dos componentes da parede celular de plantas pode contribuir no desenvolvimento de processos para liberação de açúcares e consequente produção de biocombustíveis e insumos sustentáveis para a indústria química.
Os resultados do estudo podem ser conferidos na revista iScience e fazem parte do projeto de doutorado de Trinca, que trabalha sob orientação da professora Nadia Monesi.
Perfil alimentar e o potencial ambiental do inseto
Acredita-se que os primeiros insetos que habitaram a Terra eram detritívoros (se alimentavam de matéria orgânica degradada ou organismos mortos) e, ao longo da evolução, novas maneiras de buscar os alimentos surgiram pela necessidade de adaptação das espécies, conta a professora Nadia. Na natureza, encontramos exemplos como as abelhas, que se alimentam de pólen; o Aedes aegypti, cujas fêmeas se alimentam de sangue, enquanto suas larvas se alimentam de detritos vegetais disponíveis na água, e os sciarídeos, que se alimentam de matéria orgânica em decomposição.
Segundo Nadia Monesi, mesmo dentro da família dos sciarídeos, que possuem uma característica alimentar de decompositores, diferentes insetos podem apresentar hábitos alimentares diferentes, com espécies que se alimentam de plantas vivas. A mosca-varejeira australiana, a Lucilia cuprina (pertencente à família Calliphoridae), por exemplo, se alimenta de fluidos teciduais, sangue e tecido dérmico de um hospedeiro vertebrado. Já P. hygida se alimenta de fungos e matéria vegetal em decomposição.
Com a caracterização das CAZymes presentes na saliva do P. hygida, foi possível entender exatamente o que esse inseto é capaz de decompor. “As CAZymes são capazes de catalisar a conversão (acelerar a transformação) de diferentes polissacarídeos (xilanas, glucanas, etc.) para produzir açúcares; e estudos bioquímicos da saliva nos permitiriam entender melhor como a espécie atua na degradação de biomassa vegetal e de fungos”, adianta a pesquisadora.
Para o estudo, o perfil biocatalítico (uso de componentes vivos para acelerar reações químicas) de P. hygida foi comparado com perfis de duas outras espécies de sciarídeos com DNA genômico já sequenciado, a Bradysia tilicola e a Bradysia cellarum. Os resultados reforçam o papel decompositor dos sciarídeos. “Nossos dados mostram que a maior parte da CAZymes encontradas é comum nas três espécies investigadas. Não é possível dizer que todos os sciarídeos apresentam este potencial, entretanto, é notável que, das 74 famílias de CAZymes encontradas nesses sciarídeos, 54% das famílias estão presentes nas três espécies.”
Também foram comparados os perfis de CAZymes dessas três espécies com uma quarta espécie, porém de outra família, a Lucilia cuprina, que põe ovos em feridas abertas de animais e as larvas se alimentam de tecido animal vivo. “Nessas análises conseguimos mostrar que a L. cuprina apresenta somente as CAZymes responsáveis pelo metabolismo geral de carboidratos dos insetos, enfatizando mais uma vez o perfil biocatalítico especializado para biomassa vegetal apresentando pela P. hygida e os dois outros sciarídeos investigados”, enfatiza Trinca.
Porém, ainda não é possível dizer que o inseto estudado seja o mais eficiente nessa função, pois existem poucas espécies com o seu perfil biocatalítico conhecido. “O que sabemos é que a identificação das CAZymes secretadas de sciarídeos explica em parte as bases bioquímicas da atividade desses decompositores em cadeias tróficas de solo. Além dessa contribuição, o estudo tem potencial para aplicações biotecnológicas, por exemplo, na degradação da biomassa vegetal para liberar açúcares que podem ser utilizados em processos fermentativos para a produção de biocombustíveis e insumos sustentáveis para a indústria química”, adianta Ward.
Inseto foi descoberto no campus da USP em Ribeirão Preto
A Pseudolycoriella hygida é uma mosca pertencente à família Sciaridae da ordem Diptera que foi isolada em 1965, no campus da USP em Ribeirão Preto. A façanha é do professor aposentado da FFCLRP Maurílio Antonio Ribeiro Alves, que iniciou a cultura com ovos de duas fêmeas do inseto quando ainda era aluno e trabalhava sob orientação do professor Heni Sauaia, da FMRP. Em 1968, a descrição da espécie, foi publicada e classificada no gênero Bradysia.
“Na época, o laboratório do professor Sauaia dedicava-se ao estudo de um fenômeno de replicação de DNA característico de sciarídeos, que leva à formação de múltiplas cópias de DNA em regiões específicas dos cromossomos da glândula salivar de larvas. Essa replicação adicional de DNA resulta na formação de regiões expandidas no cromossomo, denominadas Pufes de DNA, que foram inicialmente descritas por Marta E. Breuer e Crodowaldo Pavan e, subsequentemente, estudadas por diferentes grupos de pesquisa no Brasil e no exterior que utilizaram diferentes espécies de sciarídeos como modelo de estudo”, conta Nadia Monesi.
Estudo reclassifica espécie em novo gênero
Com o avanço dos estudos ao longo dos anos, o inseto, que era inicialmente classificado como Bradysia hygida, passou a integrar outro gênero, o Pseudolycoriella. Trinca relata que a relação filogenética entre os organismos pode ser percebida através de comparação de sequências de DNA das espécies. Análises filogenéticas baseadas nas sequências de DNA mitocondriais (material genético contido nas mitocôndrias, fonte de energia das células) mostraram que a então Bradysia hygida tinha relação apenas com o único genoma mitocondrial de Pseudolycoriella disponível e não com os outros genomas do gênero Bradysia que foram incluídos na análise.
Entre outras diferenças, os estudos mostraram também que o ordenamento dos genes de P. hygida não era conservado com o das demais Bradysia. “É importante ressaltar que o genoma mitocondrial de P. hygida é o maior já descrito dentro da ordem Diptera, com cerca de 37 mil nucleotídeos, tamanho que normalmente varia em torno de 15-20 mil nucleotídeos em outras espécies”, explica Trinca.
O trabalho despertou o interesse do professor Frank Menzel, um taxonomista de sciarídeos do Senckenberg Deutsches Entomologisches Institut (SDEI), na Alemanha, que reclassificou definitivamente a Bradysia hygida no gênero Pseudolycoriella, um gênero definido por Menzel & Mohrig apenas em 1998. “Note-se que a reclassificação não invalida a classificação original de Sauaia e Alves de 1968, pois o gênero Pseudolycoriella não existia quando a espécie foi descrita”, enfatiza o pesquisador.
Em 2022, Menzel renomeou a espécie para Pseudolycoriella hygida (Sauaia & Alves, 1968). Na prática, a reclassificação não altera o papel da espécie no solo, pois a mudança foi para um gênero mais adequado criado posteriormente à descoberta do inseto – mesmo com a mudança, ele ainda pertence à família Sciaridae.
*Estagiário, sob orientação de Rita Stella
Mais informações: e-mails vitor.trinca@yahoo.com.br e namonesi@fcfrp.usp.br
Matéria – Jornal USP, por Eduardo Nazaré